Um dia, o infortúnio bateu à porta do José Domingues.
Saíra de casa, ainda madrugada, preocupado com a sua Lavrada que, por aqueles dias, estava para parir. Vestiu uma “suera” de lã fiada pela Virgília, por quem se apaixonara desde os tempos da escola, e dirigiu-se à atafona onde o animal passara a noite, protegido da invernia que soprava forte, tocada a chuva. O negrume da noite, exigia um naco de luz do velho candeeiro a petróleo, e a muito custo desceu a Canada da Forca. Ao aproximar-se do local, ouviu a Lavrada em altos berros, como se estive a ser esquartejada a frio. Apressou o passo com cuidado, para não tropeçar nas pedras caídas das paredes e, de rompante, entrou na loja onde o animal exaurido em sangue estava prostrado ao lado de uma bezerra que jazia imóvel, sobre a palha da manjedoura.
Perante quadro tão trágico, José começou a tremer e as lágrimas escorreram-lhe pela cara. Os seus sonhos pareciam desfeitos. Perdida a bezerra que tanto desejava, corria também o risco de perder a sua Lavrada que alimentava a economia familiar.
De repente, lembrou-se de invocar o Senhor Espírito Santo. A sua fé não movia montanhas, mas lembrou-se de seus pais dizerem que, nas horas de aflição, Ele fazia milagres. Pensou, pensou... e prometeu que, caso a vaca vencesse a doença e melhorasse, levaria a corôa à Igreja e daria um jantar em honra do Senhor Espírito Santo, logo que a vida endireitasse.
Imbuído destes pensamentos, José encheu-se de coragem, retirou da loja fria o cadáver da bezerrinha, enterrou-a e foi junto da Lavrada: deu-lhe água fresca, feno e aguardou que a hemorragia estancasse.
Lá fora, o vento amainara e a noite chegava ao fim. Anunciando a aurora, as cagarras calaram-se, os pássaros iniciaram o seu chilrear e, em redor, o gado começava a reclamar dos donos, alimento. A Lavrada, entretanto, começava a dar sinais de pretender reerguer-se. O pior já passara.
José inclinou-se perante o animal e agradeceu ao Senhor a graça recebida, prometendo honrar a sua promessa, logo que possível. Depois, correu a casa a contar à Virgília o sucedido, enquanto o sol despontava na montanha do Topo.
Passados alguns anos, chegou a altura de José Domingues cumprir a promessa feita naquela negra madrugada de inverno.
Durante a semana, amigos e familiares reuniram-se no salão da localidade para preparar a festa. Muitos trabalhos e canseiras que incluíram o partir da carne do melhor animal do rebanho de José Domingues, o acender os fornos e proceder à cozedura da massa sovada e do pão para as sopas, o confecionar o arroz doce e muitos mais preparativos de um jantar para cerca de 500 pessoas convidadas pelo mordomo agradecido.
“Todos os dias é uma festa” – confessava um velho agricultor emigrado no Canadá. “É uma alegria, porque as pessoas que diariamente aqui trabalham, ajudam de boa vontade o mordomo até com suas ofertas: uns dão ovos, outros arroz, alguns açúcar, outros farinha e houve quem fosse ao mar e trouxesse a pescaria para o caldo de peixe da segunda-feira.”
As coroações, realizadas por mordomos, em pagamento de promessas como a acima descrita, constituem práticas ancestrais que o povo crente valoriza. Hoje, devido ao desafogo económico e à solidariedade dos vizinhos e amigos, os jantares do Espírito Santo constituem momentos de grande confraternização, de convívio e também um sinal da Fé do Povo.
E, embora se respeite restrições anacrónicas impostas outrora pela hierarquia impedindo que os foliões entrem na Igreja, a piedade popular mantém a tradição de rezar, diariamente, o terço acompanhado de cânticos próprios, mesmo sem a presença de clero. Neste sentido, penso que a hierarquia deveria repensar a sua prática pastoral, pois há valores humanos e religiosos que devem ser aproveitados e relevados na vida das comunidades, como sinais da vitalidade da Fé e da presença de Deus no meio dos homens.
Se há festas do Espírito Santo que pouco têm de cristão e muito têm de ritual folclórico-profano, há, pelo contrário, celebrações genuínas onde a solidariedade é a tradução da Fé no Divino e o respeito pelo tradicional culto e uma demonstração da devoção secular do nosso povo.
Por isso, no jantar do José Domingues e da Virgília se aclamou convictamente o Divino Espírito Santo e se implorou as maiores bençãos para os mordomos que, numa noite negra de inverno, invocaram a misericórdia de Deus.
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